quarta-feira, 11 de junho de 2008

O “outro Portugal” visto pelos grandes fotojornalistas - o caso particular da Nazaré

Henri Cartier-Bresson, Edouard Boubat, Jean Dieuzaide, Bill Perlmutter foram alguns dos grandes repórteres fotográficos que passaram por Portugal e pela Nazaré, sobretudo na década de 1950. Viram para além do folclore e dos lugares-comuns turísticos e revelaram um “outro Portugal”.


(1958) Bill Perlmutter

Portugal foi descoberto pelos grandes repórteres fotográficos a partir da década de 50 do século passado, precisamente no apogeu do fotojornalismo, como aponta o crítico cultural Jorge Calado: “visualmente, Portugal estava na moda” (1).

A Segunda Guerra Mundial tinha passado ao lado do país: o resto da Europa renascia das cinzas da guerra e modernizava-se, enquanto Portugal permanecia agarrado aos vestígios de um glorioso passado, voltando as costas ao progresso. O centro emanador da política cultural do Estado Novo – o Secretariado de Propaganda Nacional – teve como primeira grande intervenção da criação de uma linguagem folclórica nacional no final da década de 1930 com o concurso da "Aldeia mais Portuguêsa", para apurar qual a localidade do território metropolitano que reunia o maior número de características da "Portugalidade” (2). A aldeia de Monsanto, no distrito de Castelo Branco, foi a eleita e foi apresentada como o modelo a seguir, observa o musicólogo João Soeiro Carvalho: “Esta aldeia viu-se, de repente, congelada no tempo, e transformada em modelo oficial da Portugalidade, a imitar por outras localidades. Foi objecto de uma grande mediatização, através da rádio, do cinema, de quase todos os jornais e revistas, de livros e colecções de postais, panfletos turísticos e discos”(3).

No entanto, a propaganda do Estado Novo não surtia efeitos em fotojornalistas como Cartier-Bresson ou Edouard Boubat. “Mal chegavam a Lisboa, quase todos os visitantes rumavam à Nazaré. A combinação de fervor religioso e costumes ancestrais com um mar traiçoeiro reveleva-se irresistível”, faz notar Jorge Calado (4).


Nazaré - Portugal (1955) Henri Cartier Bresson

Outro grande pólo de atracção fotográfica foi a revolução de 1974 “a última grande aventura do fotojornalismo em Portugal”, observa ainda Jorge Calado.

Ao país “oficial” prestaram pouca atenção fotógrafos como Jean Dieuzaide ou, quando muito, uma atenção distraída, escreve o ensaísta Eduardo Lourenço no texto de introdução ao livro de Dieuzaide Portugal 1950. Em particular, nota Eduardo Lourenço, as mulheres da Nazaré são “ícones da nossa mitologia arcaica”, que aos olhos de Dieuzaide são “verdadeiras madonas, sem lenda, cuja única memória é a memória sem idade do nosso povo, mais antiga do que ele. Elas situam-se para além da História, à imagem do que acontece com uma grande parte do nosso país, e vivem os restos de uma aventura colectiva cultivada pelo “outro Portugal” (5).


Petite Fille au Lapin (1958) Jean Dieuzaide

Esse outro Portugal não escaparia à objectiva de Edouard Boubat, que na praia da Nazaré fez uma das suas mais conhecidas fotografias, que haveria de figurar na capa do deu primeiro livro - Ode Maritime - publicado no Japão em 1957.


Nazaré - Portugal (1956) Edouard Boubat

"It was my first trip to Portugal, I believe it was in 1956. (...) we arrived at a hotel by the seaside, Sophie was a little tired, and I said, "I am going to the beach," I had only my little old Leica, and that man was there, click. I had only arrived half an hour before, but there he was, with his child, as if he had been waiting for me, and so I took my first photo of Portugal, a photo that will endure. I had come a long way, I had dreamt of Portugal, so in a sense I too was waiting for him, there was expectation on both sides. In some way, a photo is like a stolen kiss. In fact a kiss is always stolen, even if the woman is consenting. With a photograph it's the same: always stolen, and still slightly consenting."

Esse outro Portugal seria também capturado em película por Stanley Kubrick em 1948, como observa Rainer Crone no recente livro Stanley Kubrick : Drama & Shadows.

Em vez de concentrar a sua atenção nos lugares-comuns turísticos como igrejas e monumentos, o então jovem fotógrafo da revista Look preferiu olhar para o quotidiano desta vila piscatória arcaica, capturando a dignidade humana dos seus habitantes e dando testemunho do seu fascínio e respeito pelo povo e respectiva cultura (6). Kubrick viu o “Portugal estrangeiro”, nota Jorge Calado, o das viúvas da Nazaré e dos moinhos de vento, como outros que lhe sucederiam em Portugal, “mas também soube encará-las de frente para começar a desfiar o seu fado de tragédia grega” (7).


(1948) Stanley Kubrick

Se hoje fotos como estas são consideradas por alguns como turísticas, assinala ainda Jorge Calado, tal se deve a se ter vergonha da diferença e a se preferir segregar a tristeza e a pobreza para os guetos: “o português só se vira para o Portugal dos pobrezinhos e da resignação dos lenços pretos por opção política. (…) O estrangeiro não tem tais preconceitos. Vê a vida a cinzenzo e intui a sua presença no outro e no diferente”. Assim, a Nazaré ocupa um lugar único na fotografia portuguesa, defende Calado: “A Nazaré foi a nossa Coney Island, a Trafalgar Square de todas as demonstrações. E que seria da fotografia americana sem a primeira ou da inglesa sem a segunda? A Nazaré não está nem mais nem menos presente no imaginário colectivo do que a praia proletária à beira de Manhattan” (8).

Numa época em que as mulheres já não aguardam os seus homens na praia e que poucos são os pescadores que dão continuidade às tradicionais artes da pesca, fica a pergunta: a Nazaré ainda é fotogénica?


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É livre a reprodução para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados.
Citar como: Quico, Célia (2008) “O “outro Portugal” visto pelos grandes fotojornalistas - o caso particular da Nazaré”. Disponível em <
http://nazare-portugal.blogspot.com/2008/06/o-outro-portugal-visto-pelos-grandes.html> acedido em (data).
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Notas:
(1) Calado, Jorge (2005) Olhares Estrangeiros – Fotografias de Portugal, catálogo de exposição no Espaço Chiado 8 – Arte Contemporânea, de 29 Novembro de 2005 a 31 de Janeiro de 2006, edição Culturgest.
(2) (3) Soeiro de Carvalho, João (1996): “A Nação Folclórica: projecção nacional, política cultural e etnicidade em Portugal”, Revista Transcultural de Música/ Transcultural Music Review. Disponível online em (consultado em 2006-07-07):
http://www.sibetrans.com/trans/trans2/soeiro.htm
(4) Calado, Jorge (2005) Olhares Estrangeiros – Fotografias de Portugal, catálogo de exposição no Espaço Chiado 8 – Arte Contemporânea, de 29 Novembro de 2005 a 31 de Janeiro de 2006, edição Culturgest.
(5) Dieuzaide, Jean (fotografias); Lourenço, Eduardo (texto) (1998) Portugal 1950, edição Centre Nacional du Livre.
(6) Crone, Rainer (2005) Stanley Kubrick: Drama & Shadows, Phaidon Press.
(7) (8) Calado, Jorge (2006) “Cinema e fotografia”, revista “Actual” suplemento do jornal “Expresso”, 20 de Janeiro de 2006.

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