quarta-feira, 18 de junho de 2008

Existe na Nazaré uma das últimas culturas comunitárias tradicionais na Europa?

Passear pelas ruas estreitas da velha Nazaré é uma das melhores formas de contactar directamente com aquela que será uma das últimas culturas comunitárias tradicionais na Europa. A vida comunitária característica das aldeias rurais europeias da Idade Média subsistiu na classe piscatória nazarena.


A vida comunitária característica das aldeias rurais europeias da Idade Média subsistiu na classe piscatória nazarena (1). Quem o afirmou foi o antropólogo norueguês Jan Brogger, do Instituto de Antropologia Social da Universidade de Trondheim na Noruega. O trabalho de campo decorreu durante toda a década de oitenta, do qual resultaria o livro Pre-Bureaucratic Europeans: A Study of a Portuguese Fishing Community, publicado em 1989 na Noruega e em 1992 nos Estados Unidos da América. A tradução portuguesa foi publicada em 1992, com o título Pescadores e Pés-calçados.

Em traços largos, as comunidades europeias na Idade Média caracterizam-se pela inexistência da divisão entre o público e o privado, por uma atitude permissiva em relação a comportamentos individuais, em particular em relação aos comportamentos sexuais e, ainda, pela crença no sobrenatural. A partir do século XVI assiste-se ao refinamento gradual de maneiras, linguagem e comportamento: a simplicidade rústica medieval dá lugar ao padrão da moderna burguesia urbana (2).

A importância da realidade do povo nazareno residia no facto de as suas instituições, comportamentos e crenças representarem uma fase de particular interesse no processo de transformação da existência humana. No caso da Nazaré trata-se de saber porque não foi afectada pela grande transformação, provocada pela ascensão do capitalismo e da civilização industrial. O domínio da mulher parece explicar porque a família nazarena resistiu à tendência geral de modernização, defende Jan Brogger. Na Nazaré as famílias são matrifocais, ou seja, são as mulheres os verdadeiros chefes de família: um fenómeno único em todo o Mediterrâneo, de acordo com o investigador (3).

No entanto, será que hoje em dia “o universo da comunidade piscatória da Nazaré é ainda um universo encantado”, como escreveu Jan Brogger? Passados quase cerca de vinte anos sobre a investigação, há alterações substanciais ao quadro descrito por Jan Brooger? Está em vias de extinção a cultura comunitária tradicional da Nazaré?

O ritual comunitário por excelência dos nazarenos é o Carnaval. O espírito de camaradagem faz do Carnaval a maior experiência do ano na Nazaré, algo só possível numa comunidade, de acordo com Jan Brogger (4). O Carnaval é antecipado pelos tradicionais festejos do dia de São Brás, a 3 de Fevereiro, uma romaria que reúne todos os anos centenas de pessoas no sopé do monte de São Bartolomeu ou de São Brás. As origens dos festejos perdem-se no tempo, mas quem por aqui passe a 3 de Fevereiro reconhece muitos dos elementos das festas dionisíacas: as fogueiras, as danças, o álcool, os símbolos fálicos, como nota a escritora Hélia Correia no prefácio ao livro do fotógrafo Valter Vinagre Monte Siano (5).

Actualmente, o Carnaval movimenta um número considerável de pessoas e de recursos: em 2006, organizaram-se cerca de 35 grupos carnavalescos, que totalizaram cerca de 3.000 pessoas a desfilar, isto numa localidade que tem pouco mais de 10.000 habitantes.

Os bailes são o palco por excelência da reunião da comunidade nazarena: pessoas de todas as idades e classes sociais se reencontram nas salas de baile do Casino e Mar-Alto na Nazaré, no Planalto no Sítio da Nazaré e da Pederneira. Com início por volta das dez horas da noite, os bailes terminam ao nascer do sol, à excepção do baile de quarta-feira de cinzas, em que se regressa a casa mais cedo. A regra nestes bailes de Carnaval é o caos: a multidão organiza-se de forma desorganizada e espontânea em rodas e cordões de gente. Animados por grupos musicais locais, nos bailes exibem-se ainda ranchos organizados para o efeito e as cegadas, representações teatrais que satirizam pessoas e acontecimentos, sobretudo de âmbito local, que até há cerca de trinta anos eram exclusivamente realizadas por homens.

As marchas Carnavalescas fazem parte dos elementos curiosos do Carnaval desta região. Todos os anos, autores e compositores locais criam novas marchas, que desempenham a função de emblema musical de determinado ano.Por ano, os autores locais criam cerca de 40 marchas originais, para as salas de baile, grupos e ranchos carnavalescos.Para muitos, o Carnaval ocupa um lugar central na revitalização da identidade cultural dos Nazarenos. Ainda que outras tradições se percam com o tempo – como é o caso das artes de pesca -, celebrações como o Carnaval e o São Brás mantêm vivos alguns dos traços da cultura comunitária tradicional da Nazaré.


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É livre a reprodução para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados.
Citar como: Quico, Célia (2008) “Existe na Nazaré uma das últimas culturas comunitárias tradicionais na Europa? ”. Disponível em <http://nazare-portugal.blogspot.com/2008/06/existe-na-nazar-uma-das-ltimas-culturas.html> 
acedido em (data).
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Notas:
(1) Brogger, Jan (1992) Pescadores e Pés-Calçados, Edição Livraria Susy, pag. 220.
(2) Brogger, Jan (1992) Pescadores e Pés-Calçados, Edição Livraria Susy, pag. 69.
(3) Brogger, Jan (1992) Pescadores e Pés-Calçados, Edição Livraria Susy, pag. 220.
(4) Vinagre, Valter (2004) Monte Siano, ed. Assírio & Alvim.


Fontes/ Bibliografia Científica:
Brogger, Jan (1992) Pescadores e Pés-Calçados, Edição Livraria Susy.
Brogger, Jan & Gilmore David D. (1997) “The Matrifocal Family in Iberia: Spain and Portugal Compared”, Ethnology, Volume 36, Issue: 1, University of Pittsburgh. Disponível online (consultado a 2006-06-13):
http://www.questia.com/PM.qst?a=o&d=5001513801
Trindade, José Maria & Penteado, Pedro (2001) “A Nazaré e os seus pescadores”, Revista Oceanos, nº47, Dezembro de 2001, Lisboa.
Vinagre, Valter e Correia, Hélia (2004) Monte Siano, ed. Assírio & Alvim.

1 comentário:

jm disse...

Artigo bastante completo e detalhado. No sexto parágrafo ha uma referência para [4] que parece trocada... será para [3]?